O silêncio das ruas, a redução de hidróxido de carbono, o vazio da quadra de esportes e do playground do condomínio, o sabiá, que há tempos antecipara o seu canto para não concorrer com o ruído dos veículos, agora ensaia retomar o horário natural de seu espetáculo encantador para atrair seu par. Em tempo de Covid 19 e confinamento, minha memória me conduz para uma viagem no tempo.
O ano? Talvez 1.963.
Ainda é forte em minha memória, a imagem daquelas hortênsias espalhadas pelo quintal. Tudo ali contribuía para que elas se renovassem a toda primavera. O rio que separava o quintal do campinho de futebol, os patos e galinhas que desfilavam por ali, seguidos de seus filhotes, deixando pelo caminho seus dejetos, adubavam voluntariamente à terra. Vez ou outra era possível ouvir o grunhido do suíno que, inocentemente aguardava em um chiqueiro, no fundo do quintal, o dia em que seria a fartura da noite de natal.
Na rua sem asfalto, uma ponte de madeira sobre o rio permitia a passagem de alguns pais de família, que transitavam sobre suas bicicletas, com marmitas de alumínio amarradas no bagageiro, rumo às indústrias de pneus. Inspiração do hino da cidade: “salve, salve torrão andreense, gigantesco viveiro industrial seu formoso destino pertence aos que lutam por um ideal”.
Era este o cenário no raio de limite da minha compreensão.
Na rádio, a presença marcante do saudoso astrólogo Omar Cardoso, brindava todas as manhãs com a memorável frase: “Todos os dias, sob todos os pontos de vista, vou cada vez melhor”, era um convite para ouvir as mensagens dos astros e catapultarmos nas galáxias.
Um único aparelho de rádio nesta sintonia, era mantido a um volume audível a quem transitava pelo quintal, a voz do interlocutor e o som das melodias disputavam com os gritos dos meninos que jogavam “pelada”, no campinho de grama desgastada pelos seus pés descalços.
Aquele pequeno aparelho sonoro, ao alto, em uma cantoneira na cozinha, integrava a família. Como não lembrar da canção a prece ao vento? Vento que balança as folhas do coqueiro, Vento que encrespa as ondas do mar, Vento que assanha os cabelos da morena, me traz notícias de lá – melodia de Fernando Mendes a embalar o nosso cotidiano, colaborava para a contemplação de todos os elementos naturais daquele quintal.
Algumas famílias podiam também usufruir das imagens televisivas em um único cômodo da casa, mas nada comparável à disputa de um lugar para acessar à televisão que ficava lá no pequeno armazém do bairro, privilégio reservado àqueles que não tinham o aparelho em suas casas. Ah! Lá sim devia ser legal! Não pude constatar pessoalmente, mas dava para ver a alegria no semblante dos meninos que ali frequentavam.
Eram tantas informações naquelas paisagens! Eu ainda não tinha referências, aos meus cinco ou seis anos, sobre o micro e macrocosmo, mas seguramente ali estava a amostra de tudo, e aos poucos, sem que houvesse qualquer aviso, se descortinava um cenário que ia mudando suas vestes.
A figura romântica da musa inspiradora da prece ao vento passou a contracenar com a interprete italiana que atravessou fronteiras com seus cabelos curtos, calças comprida e suspensórios. Uma linguagem diferente e mensagem ousada, era Rita Pavone cantando: “ Datemi um martelo Che cosa ne vuoi fare Lo voglio dare in testa A chi non mi va A quella smorfiosa Com gli icchi dipinti Che tutti quanti fan ballare Lasciandomi a quardare Che rabbia mi fa”
Eram tantas certezas a me confundir… não restava dúvida, algo diferente estava acontecendo, mas eu só sentia, era muito difícil traduzir em palavras, faltavam-me o repertório das letras.
Em uma tarde ensolarada propícia para uma sessão de fotos, naquele mesmo quintal, fui posicionada de frente para a câmera fotográfica e de costas para o espelho de molduras em madeira torneada. Era o momento de retratar meus longos cabelos, para logo em seguida se despedir das madeixas que foram trocadas pelo corte ousado da Rita Pavone. Por longo tempo aqueles cachos foram guardados na gaveta da penteadeira, a lembrança de uma passagem.
O ritmo dos dias aparentava mais acelerado, algumas bicicletas foram substituídas por lambretas. Os quintais foram diminuindo, dando lugar a outros imóveis e a algumas pequenas indústrias. A paisagem sonora sofreu grande modificação com a chegada destes novos vizinhos.
As moças do bairro foram admitidas nas indústrias têxteis e de lá também traziam trabalho para serem desenvolvidos em suas residências, há exemplo do recorte das rendas, tarefa que era dividida entre a mãe e os filhos menores.
O início das manhãs e das tardes passaram a ser pontuados com o apito agudo das fábricas que, subitamente, roubavam a soberania do galo, mas ele teimosamente, mantinha-se firme e indiferente aos ataques do invasor e como mensageiro fiel, prosseguia com os propósitos de sua natureza. Em fina sintonia era possível selecionar o seu canto em meio a tantos ruídos, e assim resgatar a memória e o som da velha melodia “vento diga por favor, aonde se escondeu o meu amor”.
Não resta dúvida que naquelas entrelinhas, algo diferente estava acontecendo, mas eu só sentia.
Hoje, em minha janela, o silêncio, as lembranças e a ousadia do sabiá, me trazem a estranho prazer no confinamento, é muito difícil traduzir em palavras, faltam-me o repertório das letras.
Antonieta Rosa Nogueira Ferreira é advogada, presidente há mais de 17 anos da Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa, da OAB de Santo André, na Grande São Paulo. Ela é a idealizadora do Curso de Cuidador, Dinâmica de Convivência e Cidadania que desenvolve desde 2011 em parceria com uma universidade, oferecido gratuitamente com o objetivo de melhorar o atendimento aos idosos no seu município. Também criadora do Grupo Despertar, grupo de ajuda autoconhecimento envelhecimento ativo.
Antonieta Rosa Nogueira Ferreira foi convidada pelo Jornal da 3ª Idade para escrever na série Minha Janela para a Rua, inspirado na coleção “Minha Janela para o Mundo”, organizada pelo jornal alemão Frankfurter Allgemeine Zeitung, que lá está publicando vários escritores e filósofos de todo o mundo escrevendo sobre o que veem das suas janelas durante o período de isolamento motivado pela pandemia da Covid-19. Aqui estamos convidando pessoas que se destacaram, nas últimas décadas, na defesa dos direitos dos idosos no Brasil.