Entrevista com o Engº Lúcio Gregori idealizador da Tarifa Zero nos ônibus de São Paulo

Lúcio Gregori, engenheiro, ex-Secretário de Transportes de São Paulo. Foto: divulgação

Na live promovida pelo Coletivo Defesa da Pessoa Idosa de São Paulo, (em 10/2) para debater a retirada da gratuidade nos transportes para idosos, de 60 a 64 anos, um dos convidados foi o engenheiro civil, Lúcio Gregori, que falou sobre Política de Mobilidade, Transporte Público, a sua especialidade.

Ele é ex-secretário municipal de transportes da Prefeitura de São Paulo, na gestão da Prefeita Luíza Erundina (1989-1992) e professor aposentado. Como autor do projeto Tarifa Zero, ele serviu de inspiração para o Movimento Passe Livre, que levou uma multidão às ruas em 2013 e conquistou o cancelamento do aumento de tarifas. Ele continua como colaborador do MPL e garante que a convivência com a “moçada” garante uma troca feliz. Ele passa seu conhecimento e eles o “obrigam” a uma atualização que o renova.

Para saber mais sobre as questões que implicam na gestão dos transportes em São Paulo, o Jornal da 3ª Idade conversou com ele que, exatamente por conhecer muito das dificuldades de mobilidade numa cidade enorme, preferiu mudar para Jundiaí, a 50 quilômetros da capital.

Jornal da 3a Idade – O senhor tem um vasto currículo na área da mobilidade, mas ficou mais  conhecido, quando foi Secretário dos Transportes, na gestão da Prefeita Luíza Erundina, quando idealizou a Tarifa Zero para os transportes públicos de São Paulo. Por que não deu certo naquela época? Porque o senhor continua acreditando ser possível hoje?

Eng. Lúcio Gregori – Não é que não deu certo. Na verdade, a proposta nunca chegou a ser colocada em funcionamento, porque a Câmara Municipal não aprovou a reforma tributária que era necessária ser feita, para que se tivesse recurso para bancar a tarifa zero. Tínhamos encaminhado um projeto de lei que reajustava o IPTU de uma forma bastante progressiva. Não alterava substancialmente o pessoal de média e baixa renda, mas se criava um fundo que iria bancar a tarifa zero. A Câmara Municipal nem sequer colocou em votação o PL. Na época, uma pesquisa feita pelo escritório Toledo e Associados, em dezembro de 1990, apontava que 70% da população aprovava a mudança no IPTU e 68% achava que deveria fazer a tarifa zero.

Jornal da 3a Idade – Passados quase 30 anos, a Câmara Municipal de São Paulo novamente toma uma atitude duvidosa. A proposta de cassação do direito adquirido pelos idosos, de 60 a 64 anos, de gratuidade nos transportes, foi embutida em uma votação que nada tinha a ver com o assunto. É o lobby das empresas que pesa mais que a vontade da população?

Eng. Lúcio Gregori – São várias coisas. O lobby das empresas é gigantesco, movimentando no Brasil um montante na ordem de 70 bilhões de reais por ano. Na cidade de São Paulo são cerca de 7 bilhões de reais, por ano. É muito dinheiro em jogo, com pouquíssimos empresários no setor. Com a pandemia caiu muito a demanda de quantidade de passageiros transportados. Com isso a receita tarifária desabou.

Jornal da 3a Idade –  Não tinha mudado o critério de cálculo nos transportes? Não entrou ainda em vigor?

Eng. Lúcio Gregori –  Na verdade, a mudança recente que foi feita, é exatamente aquilo que fizemos em 1991, que é fazer o contrato tipo fretamento. É como se a Prefeitura alugasse ou fretasse um número X de ônibus e pagasse o valor acordado e acabou, o empresário não faz mais interferência e a prefeitura é que vai determinar onde os ônibus vão andar e quanto será cobrado de tarifa. Esse é o critério escolhido atualmente, mas que ainda não está em vigor. Ainda prevalece um pagamento por passageiros transportados. Fizeram um aditivo que ainda demora quase dois anos para ficar valendo.

Jornal da 3a Idade – Em 2013 a pressão das ruas fez com que o Governador Geraldo Alckmin e o Prefeito Fernando Haddad recuassem no valor da tarifa. Em plena pandemia, sem a possibilidade de repetir essa forma de pressão, pela necessidade de distanciamento, o senhor acredita que se possa conseguir fazer com que a Prefeitura retroceda na cobrança para os idosos?

Eng. Lúcio Gregori – As reações são imprevisíveis. Ainda não é possível saber qual será a reação da opinião pública em cima de tudo que está sendo falado a favor dos idosos. Hoje é difícil, mas ainda não dá para saber como será a resposta da opinião pública.

Jornal da 3a Idade – O senhor na live deu exemplos de cidades do Interior de São Paulo com experiências exitosas na implantação da tarifa zero. Existe no mundo alguma cidade grande, de milhões de habitantes, que tenha adotado a tarifa zero?

Eng. Lúcio Gregori – Nas proporções de São Paulo não existe. Na China tem uma cidade de pouco mais de 3 milhões de habitantes com tarifa zero. Talin, capital da Estônia que tem cerca de 500 mil habitantes, tem tarifa zero. Em Los Angeles, nos EUA, que tem pouco mais de 4 milhões de habitantes, o prefeito chegou a cogitar implantar a tarifa zero. No entanto, não vale comparar com outras cidades grandes, porque na grande maioria dos países, a tarifa é muito menor, do que é na cidade de São Paulo. Chega a ser um terço em relação ao salário que as pessoas ganham.

Jornal da 3a Idade – A qualidade de vida muda quando a pessoa passa a ter tarifa zero. Os idosos que não pagam mais o transporte tem uma mobilidade que se torna impeditiva para os demais. O senhor tem números que mostram isso?

Eng. Lúcio Gregori – Vargem Grande Paulista, na Grande São Paulo, implantou em novembro de 2019 a tarifa zero. Foi a 14ª cidade do Brasil a adotar a medida. A demanda, que era de 300 passageiros por dia, aumentou 10 vezes, em alguns dias. Isso é um exemplo do grau de imobilismo que a tarifa impõe para as pessoas de baixa renda, que é a maioria da população. As pessoas ou estavam indo a pé, ou deixando de fazer as suas coisas. 

Na cidade de São Paulo 46% das pessoas deixam de ir a uma consulta médica, porque não tem dinheiro para pagar o transporte coletivo. Nessa mesma escala, outros tantos não vão visitar amigos e parentes no final de semana, porque também não tem dinheiro para pagar a tarifa. Bairros como Artur Alvim, Jardim Helena, Guaianases, Lajeado e Marsilac tem renda média de 1500 a 1600 por mês. Pagar 4 tarifas por dia significa quase 500 reais por mês, não dá para gastar 30% em mobilidade.

Os governantes não sabem o que é isso, porque eles têm tarifa zero. Eles andam de carro, com motorista, para todos os lugares, com as despesas pagas pela Prefeitura e Governo Estado. 

Jornal da 3a Idade – O senhor costuma relembrar que no Brasil, o primeiro transporte tipo ônibus que surgiu foi em 1817, no Rio de Janeiro, quando D. João VI concedeu a Sebastião Fabregas de Surigué, sargento-mor da Guarda Real e barbeiro do Rei, uma concessão da exploração de duas linhas de transporte de pessoas. Depois, com as Vilas Operárias surgiu a necessidade de transportes que garantisse o trabalhador nas fábricas. O senhor defende que a falta de mobilidade imposta pelo alto preço da tarifa continua a reproduzir a mentalidade colonial de manter os mais pobres longe das regiões centrais?

Eng. Lúcio Gregori – Foi montado um esquema no Brasil que é absolutamente cruel. Para impor as pessoas irem e voltar do trabalho simplesmente e ainda com muita vantagem para uma meia dúzia de empresários no país.

Jornal da 3a Idade – Existe quem defenda que uma parte da cidade poderia ter uma tarifa diferenciada, mais barata em bairros mais pobres. O que o senhor acha dessa ideia?

Eng. Lúcio Gregori – Resisto a propostas muito localizadas, porque elas vão dando margem para manobras. O direito tem que ser para todos. Está na Constituição. Senão, quando a coisa aperta tira-se primeiro dos idosos e depois diz que os estudantes só podem ter 4 a horas e vai-se  tirando direitos. A gente tem que parar de ser um país de mentirinha que de um lado o direito ao transporte está na Constituição Federal e no artigo 76 do Código Penal, a pessoa está sujeita a pena de prisão se entrar no ônibus e não pagar a tarifa.

Jornal da 3a Idade – Para fazer uma tarifa zero em São Paulo seria preciso uma reforma tributária que apontasse como bancar os custos das passagens. O senhor acredita que neste momento de retrocessos, exista espaço político para isso?

Eng. Lúcio Gregori – No fundo, a tarifa zero é uma reforma tributária. Então o centro da discussão é fazer uma reforma tributária. Essa é uma das discussões cruciais a ser feita no Brasil. O país cobra 56% de impostos do que é gasto com consumo, ou seja, dos mais pobres. A arrecadação sobre renda patrimônio representa 18% dos impostos. Nos EUA é aproximadamente o oposto. Na Alemanha 63% dos impostos vêm do patrimônio. A tributação no Brasil é tremendamente injusta. Um empresário que tenha ações, os dividendos que recebe como acionista não paga imposto. Só no Brasil e na Estônia acontece isso no Planeta Terra. Não esqueçamos que isso graças a uma lei do senhor Fernando Henrique Cardoso.  No fundo o que o Brasil precisa discutir é a reforma tributária, caso contrário as demais discussões ficarão prejudicadas.