Na última edição do Fórum Social Mundial, em janeiro passado, a arquiteta e urbanista Ermínia Maricato, convidada para falar no painel Revolução e Democracia nas Cidades disse que não é possível viver uma cidade democrática sem que os movimentos sociais prestem atenção no que acontece de fato nos bairros, nas comunidades e nos seguimentos da sociedade civil.
Na quarta-feira passada (10/2) ela foi uma das convidadas da live promovida pelo Coletivo Defesa da Pessoa Idosa de São Paulo, para falar sobre Cidade e Mobilidade: o Invisível sacrifício diário, que debateu a retirada da gratuidade nos transportes para idosos, de 60 a 64 anos, em todo o Estado. Nesse encontro ela mostrou mapas que provam o quanto a falta de mobilidade interfere na vida dos idosos.
A qualidade de vida tem tudo a ver com mobilidade, principalmente para os idosos. Ter acesso a um equipamento de saúde, a uma praça, aos serviços é o que determina o que nós chamamos de direito à cidade. O custo da tarifa tornou-se impeditivo para a maioria das pessoas da periferia e muito mais cruel para os idosos, diz a urbanista que é Especialista em Cidades, há quase 50 anos.
Erminia Maricato é ex-conselheira do Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (UN-Habitat). Foi também Professora visitante do Human Settlements Centre da University of British Columbia, no Canadá, em 2002 e da School of Architecture and Urban Planning of Witwatersrand de Joanesburgo, na África do Sul, em 2006. Ela é autora de 9 livros e, desde que se aposentou da USP, é professora visitante do Instituto de Economia da Unicamp e professora colaboradora da Pós Graduação da FAUUSP. É uma das coordenadoras do BrCidades, uma articulação nacional para construir um projeto para as cidades brasileiras, que faz parte de uma iniciativa da Frente Brasil Popular.
Para saber mais como contextualizar as necessidades dos idosos no desenvolvimento geral das cidades, que passam por tantas transformações, o Jornal da 3ª Idade conversou com ela por telefone, em pleno sábado de carnaval, quando antes da pandemia as ruas na frente da sua casa, na Vila Madalena estariam lotadas de pessoas.
Jornal da 3ª Idade – Como a senhora, que explica as transformações das cidades no Brasil e no mundo, contextualiza o aumento da população idosa nessas sociedades?
Profª Ermínia Maricato– Eu não sou especializada em idosos. Sou uma especialista em Cidades, mas é evidente que os idosos têm um papel importante no estudo das cidades, porque eles estão no fim de uma sequência de vulnerabilidades e carências que precisam ser atendidas. Na medida que as pessoas envelhecem tudo vai ficando mais difícil mesmo, principalmente quando se trata de mobilidade. Eu tenho 73 anos e percebo como as respostas às necessidades vão se alterando. Na verdade existe um processo no Brasil de urbanização que é caracteristicamente rápido. É preciso entendê-lo, para compreender o que aconteceu com as nossas cidades nos últimos anos.
Jornal da 3ª Idade – O que os movimentos sociais precisam estudar para entender essas transformações?
Profª Ermínia Maricato– O Brasil começou o Século XX com 10% da população nas cidades, hoje tem 85% das pessoas habitando os espaços urbanos. Isso é avassalador. Muitos idosos sentiram essa transformação, porque já estavam vivos nos anos 40. Como a gente vive numa sociedade absolutamente desigual, esse processo carrega marcas.
A Maria da Conceição Tavares chamava de “transformação conservadora”. O Florestan Fernandes chamou de “desenvolvimento do atraso”. Dos 520 anos de história do Brasil, temos 320 anos como colônia de Portugal, que é uma raiz muito forte. Temos 380 anos de escravidão, uma raiz que ainda está viva no país. Andei muito pelo Brasil e antes da pandemia, resolvi aceitar fazer palestras em lugares onde nunca tinha estado. Uma vez fui para Vitória da Conquista, no Interior da Bahia, e uma professora que estava me acompanhando contou que a bisavó tinha sido escrava até 1910. Não sou uma pesquisadora do assunto, e só então me dei conta que muita gente permaneceu escrava nos fundões do país, muitos anos além da lei de libertação dos escravos.
Temos outra raiz agroexportadora, que criou a oligarquia agrária, que está presente na nossa sociedade até hoje, principalmente no nosso Congresso Nacional. Somos uma sociedade urbana há menos de 60 anos. Isso está na vivência dos idosos atuais, mesmo que eles não tenham elaborado isso.
Jornal da 3ª Idade – O que falta neste momento para que as pessoas entendam essas transformações?
Profª Ermínia Maricato– É preciso informação e muita formação. Esse é um papel que as universidades deveriam estar fazendo. A nossa academia também, por causa das nossas raízes, tem uma matriz das “ideias fora do lugar”, expressão cunhada pelo Roberto Schwarz. No Século XIX nós éramos uma sociedade escravista com ideário liberal. Hoje temos no Brasil uma legislação avançadíssima, mas que está longe da realidade das pessoas. A Constituição de 1988, o Estatuto das Cidades de 2001, a Lei da Mobilidade Urbana de 2012, são avançadíssimas. São discursos que nada têm a ver com a realidade. É a chave discursiva que o Sérgio Buarque de Holanda chamava a atenção quando dizia que “o intelectual brasileiro é livresco”. Temos respiros de vez em quando, como foi a luta pelo SUS, o Estatuto Idoso. Foram arranques jogando pra frente. O escritor Itamar Vieira Junior, vencedor do Prêmio Jabuti de 2020, com “Torto Arado”, diz que o Brasil está preso no passado.
Jornal da 3ª Idade -A senhora costuma dizer que o Brasil se desenvolveu sem Estado e sem mercado. O que isso significa?
Profª Ermínia Maricato– A maior parte da população brasileira não faz parte do mercado imobiliário, não tem condições de comprar uma casa própria. Não existe uma política constante, vigorosa de moradia. Em algum lugar o povo tem que morar. A maior parte dos domicílios brasileiros são ilegais, irregulares, estão em situação de risco, não tem nada com legalização na Prefeitura, nem respeita o código de zoneamento. Essa verdade fica invisível. Eu falo disso há 50 anos.
Quase metade da população brasileira está sem esgoto e um terço não tem água tratada. O poder sempre foi ligado à propriedade da terra e temos um abismo dentro da cidade. O Mapa da Expectativa de Vida da Cidade de São Paulo é um retrato que a maioria das pessoas desconhece. Ninguém fica sabendo como é a condição de vida da maioria das pessoas. O mapa do preço do metro quadrado dos imóveis mostra as reais condições. Quem tem dinheiro compra o melhor da cidade, mora bem, não precisa de carro, anda de Uber o dia inteiro, tem mobilidade. Se tiver dinheiro pode escolher o bairro onde comprar ou alugar uma casa perto de tudo que lhe convém. Pessoas mais velhas têm muito mais problemas, que todos os que já moram na periferia. Se a mobilidade já é impeditiva para todos é cruel para os idosos.
Jornal da 3ª Idade – O que precisa estar visível para melhorar a qualidade de vida dos idosos na cidade de São Paulo?
Profª Ermínia Maricato– A concentração de emprego da região metropolitana é de 70%, isso significa que a pessoa que mora na periferia passa horas dentro do transporte público. O custo da tarifa tornou-se impeditivo. Essa é uma das coisas mais cruéis. Eu pago o ônibus da minha empregada, que mora em Itapecerica e isso custa meio salário mínimo. Para uma pessoa que está no informal ou desempregada, essa falta de mobilidade é uma tragédia diária. A qualidade de vida tem tudo a haver com mobilidade, principalmente para os idosos. Ter acesso a um equipamento de saúde, a uma praça, aos serviços é o que determina o que nós chamamos de direito à cidade. Quando as mulheres saem para trabalhar, os avós cuidam das crianças e isso acontece em um terço das famílias que são chefiadas por mulheres. As mulheres e a população negra estão ganhando um protagonismo inédito na história do país. Se pensarmos que a maioria da população é preta e parda, isso implica em mudanças. Os velhos brasileiros não lutam para aparecer.
Jornal da 3ª Idade – Como poderá ser o desenho das cidades no futuro, que vão ter mais idosos do que crianças?
Profª Ermínia Maricato-Não adianta debater os direitos dos idosos somente do ponto de vista da Gerontologia. É preciso que idosos discutam a qualidade de vida nas cidades. Os idosos têm que entender que eles precisam ter um projeto da terceira idade para a cidade, feito por eles, para cobrar investimento municipal.
O orçamento participativo seria muito maior se tivesse a presença massiva das pessoas mais velhas, que já carregam muitas experiências e passaram por muitos governos. Se a população idosa tivesse mais prestígio, a memória que eles têm da cidade estaria presente. Todo mundo vive como se as coisas tivessem sido sempre assim. Não existe a consciência do que é a história construída ao longo dos anos. Nós somos o resultado do que foi construído ao longo da nossa vida. Não consigo entender a democracia sem passar por onde as pessoas moram.